O futebol brasileiro surfou por anos sobre uma lógica muito simples que rendeu muito dinheiro: a maioria da população veria jogos duas vezes por semana na maior emissora do Brasil, ficaria ansiosa por isso, lamentaria quando seu time não fosse escolhido para as noites de quarta-feira ou tardes de domingo da Globo.
Uma parcela mais privilegiada teria a condição de, pagando um pacote de TV por assinatura, garantir mais alguns joguinhos da rodada no SporTV. Já os mais abastados e apaixonados pelo esporte mais popular do país, então, esses poderiam pagar uma mensalidade extra para ter acesso a simplesmente tudo o que rolasse no Brasileirão.
Mas, tenho que informar, essa onda não existe mais e não poderá ser surfada por muitos mais anos. Vivemos na terceira década do século 21, ainda começando, mas cheia de novos desafios e hábitos. As pessoas não parecem mais tão dispostas a “gastar” as tardes de domingo vendo o futebol brasileiro na tela da Globo. É o que mostra um levantamento feito pelo Blog do Allan Simon no Brasileirão 2020.
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Os jogos da Globo em São Paulo tiveram média de apenas 19 pontos nos domingos do Campeonato Brasileiro desta temporada. Em 2019, foram 23. Uma queda bastante considerável, de 17%, que tem uma série de fatores que podem explicá-las. Uma das mais importantes é a Libertadores no SBT, que, apesar de ter sido realizada em meios de semana, provocou mudanças cruciais na estratégia de programação da Globo. Outra vital nesse processo foi a mudança do calendário por causa da pandemia do coronavírus.
A Libertadores era uma competição da Globo há décadas. A emissora resolveu, por conta própria, rescindir o contrato em agosto do ano passado. Era uma tentativa de reduzir uma conta cara. Pagava US$ 60 milhões por temporada para transmitir a competição continental em sinal aberto (dois jogos por rodada na fase de grupos, simultâneos, com rede dividida, e um por rodada de mata-mata, desde a segunda “Pré-Libertadores” até a grande final).
Isso representava um “boleto” de R$ 232,2 milhões por ano em 2018, mas em dado momento chegou a pular para mais de R$ 350 mi com a disparada do dólar frente ao real em 2020. A Globo blefou para tentar reduzir essa fatura e se deu mal. A Conmebol não gostou da rescisão unilateral e topou ganhar bem menos do SBT (US$ 15 milhões/ano, quase R$ 82 mi no câmbio atual) com o pacote de TV aberta, buscando a diferença (quer dizer, não buscando, pois impossível de alcançar) vendendo os jogos do antigo pacote do SporTV com um PPV próprio. Foi o primeiro caso de ganhos reduzidos sem a Globo. Já já falamos mais disso.
De qualquer forma, a Globo teve que se adaptar para trabalhar com um mundo no qual a competição mais importante de clubes da América do Sul passaria a ser concorrente, e não mais produto da grade. O SBT assumiu o pacote da emissora carioca e teve que transmitir as partidas escolhidas pela rival nas noites de quarta. Tendo que manter compromissos com patrocinadores do pacote “Futebol 2020”, a Globo passou a puxar jogos do Corinthians, que não estava na Libertadores desde a eliminação diante do Guaraní-PAR na fase preliminar, para as noites das quartas-feiras. Jogos de Brasileirão que seriam do Premiere, ou que seriam por ela exibidos nas tardes de domingo.
No RJ, o time de maior audiência, o Flamengo, estava na Libertadores e era arma do SBT nessa briga. Pudera, a própria volta da emissora de Silvio Santos ao futebol nacional se deu no meio de 2020, ainda de maneira pontual, numa negociação com o time rubro-negro. Foi a final do Campeonato Carioca, outro campeonato abandonado pela Globo.
Em junho do ano passado, quando o presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória 984/2020, que estabelecia aos clubes mandantes a prerrogativa exclusiva da negociação dos direitos de transmissão de uma partida, o Flamengo, que não tinha mais contrato com a Globo pelo Carioca, resolveu transmitir por conta própria os seus jogos no YouTube.
Assim que exibiu o primeiro, contra o Boavista, a emissora carioca buscou a rescisão de um acordo pelo qual ela pagava R$ 120 milhões por ano aos clubes e federação no Rio de Janeiro. Alegou que a exclusividade do Boavista, time com o qual ela tinha contrato, havia sido rompida, e que a MP não poderia interferir em contratos assinados antes de sua existência. A Ferj entrou na Justiça contra a rescisão e conseguiu obrigar a Globo a transmitir um duelo entre Fluminense e Botafogo, mas a presença do Flamengo nas finais da Taça Rio e do próprio Carioca livrou a emissora dessa obrigação, já que ela não tinha contrato com o Rubro-Negro.
Resultado: após algumas experiências na internet, como uma fracassada tentativa de fazer um PPV próprio via MyCujoo, o Flamengo resolveu apostar na TV aberta e fechou contrato para que o SBT transmitisse a final contra o Fluminense. Foi a primeira transmissão da emissora com futebol em rede nacional desde 2003. Alcançou ótimos (para os padrões do canal) 26 pontos no RJ, empatando com a média de Jornal Nacional e uma novela repetida da Globo no mesmo horário.
A Globo ainda tem pendências judiciais a resolver sobre aquela rescisão. O Campeonato Carioca hoje pertence à Record, que não quis fazer a transmissão daquele Fla-Flu, não se interessou por futebol em momento algum durante 2020, mas viu no sucesso comercial da Libertadores no SBT uma janela de oportunidade. O problema: pagando apenas R$ 11 milhões em 2021 pelos direitos de TV aberta.
Em entrevista à Máquina do Esporte, o ex-chefão do Esporte da Globo, Marcelo Campos Pinto, que hoje comanda a empresa que fará o novo PPV do Carioca, disse que a emissora havia oferecido R$ 45 milhões para voltar a transmitir o estadual. E que isso estaria condicionado ao fim das ações judiciais abertas após a rescisão do contrato anterior, que iria até 2024.
Campos Pinto disse ainda que os clubes poderão arrecadar mais com o PPV próprio, que teria como grande vantagem a ausência da Globo como intermediária, sendo apenas uma produção dos clubes em parceria com operadoras de TV paga. Mas o ponto é: mais que os R$ 45 mi oferecidos pela Globo em 2021, e não que os R$ 120 mi que estavam garantidos até o ano passado.
Isso cobrando R$ 49,90 por mês (R$ 129,90 no pacote total, com desconto) pelo Campeonato Carioca, com dois grandes rebaixados no Brasileiro, um Flamengo dominante há anos no estado, um Fluminense dividindo atenções com a Libertadores, e os pequenos tentando sobreviver com ainda menos do que ganhavam até 2020.
Sem a dinheirama que a Globo despejava no futebol (sem caridade alguma, pois sempre lucrou muito com esses investimentos, os campeonatos estão perdendo valor. Já aconteceu com estaduais diversos pelo Brasil, como o Paranaense, Baiano, Cearense, e agora ocorre no Rio de Janeiro. São Paulo é questão de tempo, pois a Globo paga sozinha quase R$ 190 milhões pelos direitos de todas as mídias. Conseguirão clubes e federação arrecadar mais que isso a partir de 2022 fatiando em pacotes os jogos de um estadual que dura três meses?
É aí que chegamos ao outro ponto que causou a queda na audiência do futebol de domingo na Globo: a mudança do calendário. A pandemia do coronavírus paralisou as competições na segunda quinzena de 2020. Forçou o adiamento do Brasileirão, que deveria ter ocorrido entre maio e dezembro, para agosto, com fim em fevereiro de 2021. Acabou com qualquer ideia de folga que pudesse haver no dia a dia dos clubes. O exemplo do Palmeiras, que disputará todos os jogos possíveis na temporada e não tem uma semana livre para treinar há mais de seis meses, reflete o que estamos vivendo.
Mas não é só o ponto de vista dos clubes prejudicados por um calendário que faz uma mesma equipe jogar com intervalo de 48 horas, como Palmeiras e Flamengo fizeram nesta temporada. Tem o ponto de vista do torcedor também. Achar que todo brasileiro é fanático por futebol é reproduzir um conceito antigo e errado. O brasileiro tem hoje diversas opções de lazer e entretenimento.
Comemoramos quando a Globo faz mais de 30 pontos de audiência com futebol, coisa rara e restrita a grandes clássicos e/ou grandes decisões. Algo corriqueiro quando se fala em BBB, por exemplo. Novela dá mais audiência e custa menos. O reality show dá muito mais Ibope e ainda arrecada muito. Só perde para o futebol entre as receitas da Globo. Não poderia ser diferente, já que dura apenas quatro meses, contra um ano de bola rolando.
O povo tem duas moedas que se misturam e se confundem, mas são alvo de quem produz conteúdo em qualquer mídia: dinheiro e tempo. Hoje, em tempos de pandemia, desemprego e crise econômica sem fim, tem muito mais tempo que dinheiro. Mas ambos interessam às empresas de comunicação.
Se você for assinante da Netflix, Amazon Prime Video, ou Globoplay, com certeza já recebeu e-mails e notificações pedindo para voltar se ficou alguns dias sem entrar nos aplicativos. Detalhe: pagando. Ou seja, mesmo quando o dinheiro do cliente está garantido, esses serviços de streaming disputam o seu tempo.
Tudo na internet segue esta lógica. Para que esse texto fosse lido por você, ele venceu uma forte concorrência de notificações de redes sociais, Whatsapp, Telegram, stories do Instagram, vídeos do TikTok, notícias, vídeos, etc. Quando eu publico um novo vídeo no canal do Blog do Allan Simon no YouTube, eu disputo o seu tempo com todos os outros produtores de conteúdo que estão na plataforma, com a sua televisão, com os canais pagos, com os apps de streaming, com o Facebook, Twitter, entre outras coisas.
E as pessoas, cada vez mais sem dinheiro e com tempo dividido entre diversas opções de lazer/entretenimento, estão sendo bombardeadas de todos os lados. A oferta de futebol na TV aberta aumentou com a chegada do SBT à Libertadores.
A Globo, para responder, precisou subir de 38 para 47 o número de transmissões abertas no Brasileirão em 2020. Tinha semana com jogo na terça, quarta e domingo, fora as opções de futebol europeu na Band. Isso só falando em TV aberta.
Para piorar, o calendário. O Brasileirão de agosto a fevereiro mudou uma lógica que funcionava bem para a Globo. Antes, de maio a dezembro, a emissora aproveitava outono, o inverno inteiro, e encerrava as transmissões na primavera. Quem analisa audiência de TV sabe: o número de televisores ligados é sempre mais alto quando faz frio. Questão lógica: calor faz as pessoas saírem mais de casa.
Embora estejamos em uma pandemia que já matou quase 250 mil brasileiros, as pessoas continuaram saindo de casa. E o Brasileirão entrou em um cenário de início já no finzinho do inverno, pegando em cheio a primavera e o verão. Com praias lotadas e período de férias, a audiência despencou.
Porém, houve queda também nas noites das quartas-feiras. Especialmente no RJ, onde a média foi de 29 pontos em 2019, mas desabou para 22,5 pontos no Ibope nesta temporada. Motivo principal: Botafogo, Vasco e Fluminense, fora da Libertadores, foram mais escalados no meio de semana. Em SP, o Corinthians segurou mais as pontas, mas foi vítima tanto da divisão de público futebolístico com o SBT, quando do sucesso de, veja só, um reality show.
A Fazenda colocou a Record em patamares nos quais a emissora de Edir Macedo não aparecia há tempos. Deixou a Libertadores do SBT constantemente em terceiro lugar na audiência paulista. O canal de Silvio Santos só foi vice-líder quando o reality show acabou.
É a vida: a maior parte da população está mais disposta a gastar seu tempo em outros tipos de entretenimento. O nível do futebol apresentado está doloroso, futuro do calendário estúpido e das condições financeiras de nossos clubes. Num ciclo sem fim, a qualidade em baixa afasta os torcedores. Vão ficando apenas os mais fanáticos, não que seja comparável ao processo vivido pela Fórmula 1, que vira cada vez mais esporte de nicho, mas, ainda assim, preocupante.
Como querer que uma pessoa em pleno 2021 gaste duas horas na terça vendo jogo na Record pelo Carioca, ou no SBT pela Libertadores ou Copa do Nordeste, mais duas horas na Globo vendo futebol na quarta-feira (o que não vai acontecer, já que a emissora priorizará BBB e deixará de exibir jogos dos estaduais nesse dia nas primeiras fases), mais duas horas com futebol da Record no sábado e outras duas horas com a Globo no domingo?
Temos que aceitar: cada vez mais o povo brasileiro se revela como desinteressado em passar essas duas horas na frente da TV. Quem não for muito fanático se contenta com melhores momentos, exibidos a qualquer momento nas redes sociais, ou mesmo pode “acompanhar” um jogo ao vivo por meio delas, com direito a tweets trazendo os vídeos dos lances poucos minutos após eles acontecerem.
O futebol da TV vai ficando para os fanáticos, para os que não têm outra forma de acesso, ou para quem está em casa de bobeira. E é por isso que o futuro aponta para uma mudança na grade da Globo, colocando os jogos de domingo no período da noite.
O futebol da TV vai ficando também desvalorizado financeiramente. O SBT não tomou a Libertadores da Globo pagando mais. A Record não tomou o Carioca da rival pagando mais. A WarnerMedia (ex-Turner), dona da TNT Sports (ex-Esporte Interativo), virou um “ex-player” no futebol nacional. Cortou em 30% o contrato de transmissão do Brasileirão anos após ousar e oferecer R$ 550 milhões pelos direitos de TV paga da competição. Nunca conseguiu os 20 clubes necessários para pagar essa bolada toda, mas quase rompeu no meio do caminho com os oito que fazem parte do seu portfólio.
O Brasileirão tem seus contratos atuais em vigor até 2024 já sabendo que terá duas missões extremamente difíceis: manter os ganhos na casa de R$ 1,7 bilhão por temporada, e ainda manter a atenção do povo brasileiro com jogos cada vez piores, calendários bagunçados, times desfalcados de seus principais jogadores por causa das datas-Fifa, e tudo isso talvez sem a Globo.
Enquanto isso, as emissoras brasileiras estão dispostas a participar de uma ferrenha licitação pelos direitos de transmissão da UEFA Champions League. SBT, Globo, a própria WarnerMedia (atual detentora), Disney, Facebook… concorrentes não faltam por um futebol muito melhor em termos de qualidade. E olhe que em um horário com muito menos audiência, dias úteis à tarde.
O futebol brasileiro está perdendo tempo e dinheiro. Cobrando caríssimo em PPV de jogos ao vivo enquanto Amazon, Netflix e Globo garantem, por uma mensalidade bem menor, entretenimento a rodo o mês inteiro para toda a família. Assim, só vai sobrar quem for muito fanático.
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