O ano de 2025 confirma a tendência de uma década que chegou destinada a destruir todas as certezas que existiam no mundo da mídia esportiva, em especial no mercado de direitos de transmissão. A velocidade com a qual as coisas mudam agora é muito maior que no passado, e cravar qualquer rótulo, “verdade” ou previsão para o futuro é sempre um exercício arriscado e que potencialmente pode gerar muito constrangimento posteriormente.
A volta da Fórmula 1 à Globo, anunciada oficialmente há uma semana, o também oficial anúncio da aquisição da Copa do Mundo de 2026 em todos os seus jogos pela CazéTV, e o Brasileirão na Record com um bom índice de audiência em São Paulo tendo em campo um jogo sem paulistas na noite de uma quinta-feira são exemplos diferentes para ilustrar essa mesma tendência.
Comecemos pela F1 na Globo. Quando a emissora deixou a categoria após 40 temporadas consecutivas, no fim de 2020, a sensação dominante era de que a Fórmula 1 seria uma categoria quase morta, sem interesse, com público envelhecido, que estava destinada a ficar restrita cada vez mais a um nicho que não duraria muito tempo. A falta de brasileiros no grid desde o fim de 2017 piorava o cenário e tornava as corridas desinteressantes para o grande público. O tratamento dado às últimas temporadas já sinalizava essa ideia na emissora.
O acordo com a Band, fechado pela Liberty Media no começo de 2021, salvou a Fórmula 1 na TV aberta brasileira, trouxe um novo gás às transmissões (apesar de serem feitas basicamente pelos mesmos profissionais que cobriam a categoria na TV Globo e no sportv), e mostrou que ainda havia um espaço para mudanças. Naquela época, como acontece naturalmente com eventos fora da Globo, a audiência média caiu, mas a F1 mostrou força.
A Band transmitiu a Fórmula 1 de um jeito que o fã sempre sonhou. Exibiu corridas e treinos classificatórios, além das sprint races, na TV aberta. O BandSports (canal pago) e o BandPlay (streaming gratuito) se converteram em verdadeiras casas dos automobilismo. Os veículos do grupo ainda exibiram desde então Stock Car, Fórmula E, Fórmula 2, Fórmula 3, F1 Academy, WEC, entre outros. A F1 era a grande audiência dos fins de semana na Band aberta e, por isso, merecia tanto espaço com pré-corrida e exibição do pódio.
Mas a velocidade das mudanças e dos acontecimentos também atropelou a Band, que teve dificuldades na relação com a Liberty Media no período, problemas relacionados à parte financeira, a audiência não decolou a partir do desempenho da primeira temporada transmitida (até porque, convenhamos, 2021 foi um dos anos mais legais da história da F1, mas acabou sucedido por dois dos mais chatos, 2022 e 2023), e os números de alcance no Brasil nunca mais foram divulgados com a mesma pompa pela empresa que cuida da Fórmula 1.
A Globo, que em 2020 era uma emissora obcecada por cortar custos, não apenas via a F1 como um produto desgastado e sem interesse por falta de brasileiros competindo, mas também se dava ao luxo de perder eventos como a Libertadores (até hoje nunca mais recuperada na TV por assinatura, por exemplo, desde a rescisão que tirou o pacote do sportv há cinco anos), o Mundial de Clubes de 2021 (realizado em 2022 e perdido para a Band), estaduais (o Paulistão nunca mais voltou à TV Globo), e a aceitar a convivência com a concorrência nos principais campeonatos nacionais.
Em 2026, a Globo que a Fórmula 1 encontrará é outra emissora. Nos últimos anos, a empresa comprou direitos de transmissão em velocidade mais compatível com o tamanho que tem. Não perdeu oportunidades de ouro, como a Copa do Mundo de Clubes da Fifa de 2025, recuperou o Campeonato Carioca, a Libertadores no sinal aberto, superou a situação complicada apresentada pela divisão dos direitos do Brasileirão em dois blocos (Libra e LFU) e conseguiu ficar com oito jogos exclusivos, nove no total, a cada dez disputados por rodada, entre outros.
Mas a Fórmula 1 que a Globo vai encontrar também é outro produto. O famoso pódio que a TV Globo ignorava e deixava para o ge exibir na internet não é mais marcado pela demora para ser realizado, o que certamente derrubava a audiência na TV aberta (uma parcela do público não é tão passiva quanto pensamos e usa o controle remoto para driblar conteúdos que acha chatos). A Liberty transformou a F1 em um espetáculo muito melhor. Há entrevistas logo após a corrida com os três primeiros colocados, há a famosa salinha onde eles reagem aos principais lances da corrida, muita coisa.
A Fórmula 1 soube se melhorar como produto, e ainda por cima tem um brasileiro, Gabriel Bortoleto, confirmado no grid para 2026 em uma Audi que pode conseguir tudo, inclusive nada, mas surge como esperança para o torcedor mais pacheco que só se interesse pode onde há compatriotas disputando com chances de algo. E esse produto precisava do alcance que só a Globo pode fornecer no Brasil. Mais além disso, não havia qualquer possibilidade de permanência na Band, por melhor que fosse a proposta apresentada para 2026-2028.
Esse alcance que a Globo pode fornecer explica muitas das decisões tomadas historicamente por quem vende direitos de transmissão no Brasil, e a Fórmula 1 precisa dos milhões de brasileiros para engordar seus números mundiais. E foi por isso que a Fifa nunca quis confusão, mesmo em 2020, quando a Globo quis renegociar os contratos com a Copa do Mundo, abriu mão da exclusividade digital para 2022, e depois comprou apenas metade dos jogos nas edições de 2023 (feminina) e 2026 (masculina).
Era melhor ficar com a Globo e o seu alcance cobrando menos, podendo vender os jogos para outras plataformas, e conhecer melhor o mercado brasileiro. Para isso, a Fifa se aliou à LiveMode, empresa fundada pelos mesmos executivos que criaram no começo deste século o Esporte Interativo, um dos mais bem-sucedidos cases de marketing esportivo e televisão da história da mídia brasileira, conhecido por democratizar o acesso ao futebol europeu desde 2004, quando ‘nasceu’ como faixa de programação da RedeTV!, até virar um canal do grupo Warner na década seguinte.
Em 2022, ninguém se atrevou a comprar os direitos digitais para transmitir ao vivo aos mesmos 64 jogos que já estariam nas plataformas da Globo. A Fifa decidiu usar o FIFA+, seu serviço gratuito de streaming lançado pouco antes, mas também confiou em um projeto da LiveMode que usava a marca de um streamer que bombava no Brasil desde a época da pandemia, Casimiro Miguel. Liberou 22 jogos para serem exibidos em um canal no YouTube, além da Twitch, plataforma que projetou Casimiro ao sucesso nacional com suas lives nas madrugadas pandêmicas.
Foi aí que surgiu a CazéTV, canal criado especialmente para exibir esses 22 jogos. Um por dia durante a Copa do Mundo de 2022. Na época, muita gente duvidou do sucesso da empreitada, porque a “verdade” vigente em nossas mentes era a de que nenhum evento poderia prosperar na internet se estivesse sendo exibido simultaneamente na TV Globo. Afinal, com sinal aberto disponível, quem vai ver no YouTube?
Quase 7 milhões de dispositivos conectados simultaneamente durante Brasil x Croácia, quartas de final, com transmissão também da TV Globo, sportv e Globoplay. Essa foi a resposta dada pela CazéTV, que a partir daquele momento se estabeleceu no cenário de direitos no mercado brasileiro. Contando, é claro, com a vantagem de ser um projeto tocado pela LiveMode em parceria com Casimiro, o que gerou inicialmente a sensação de que a CazéTV só dava certo porque os direitos eram negociados pela mesma empresa, uma espécie de privilégio que não funcionaria em outros eventos.
Mas funcionou. A CazéTV não apenas exibiu eventos com participação da LiveMode, como jogos do Athletico Paranaense no Brasileirão até 2024, Paulistão, torneios da Fifa, etc, como adquiriu nos anos seguintes direitos como os das Olimpíadas, Jogos Pan-Americanos, Bundesliga, metade da Eurocopa de 2024 com exclusividade, além de Liga Europa, Conference League, e vários outros.
A confirmação da Copa do Mundo de 2026 provavelmente vai ser sempre acompanhada de comentários quanto ao papel da LiveMode como parceira comercial da Fifa, mas também é bem claro que a entidade máxima do futebol mundial jamais permitiria um acordo com direito aos 104 jogos (algo que, data hoje, a Globo não tem) se isso não fosse vantajoso de alguma forma para ela. Em 2022, lembrando, a autorização foi para apenas 22 jogos. Um por dia. Com LiveMode e tudo. O que mudou? Os fatos e o sucesso da CazéTV na audiência, certamente, mudaram essa percepção da Fifa.
E por falar em LiveMode e CazéTV, chegamos ao Brasileirão, que é mais um ativo que envolveu as duas marcas. A CazéTV foi o canal escolhido pelo YouTube para exibir seu pacote de jogos negociado com a LFU (Liga Forte União) tendo a própria LiveMode como representante. Um pacote que também foi muito criticado nas redes sociais por conter apenas os mesmos jogos da Record, e limitado a um por rodada em rede nacional, o que prejudicaria a audiência da emissora em São Paulo quando não houvesse paulistas em campo. Além da ideia de “dividir audiência” com o YouTube.
São Paulo é um ponto bastante sensível, de fato. Parte do mercado publicitário ainda enxerga apenas a audiência de SP como referência nacional. E houve jogos sofridos para a Record, como um Fortaleza x Internacional às 20h de um domingo. Só que há outras questões na mesa que também precisam ser consideradas. Sabe quantos jogos de Brasileirão sem nenhum dos quatro grandes paulistas foram exibidos para São Paulo na era dos pontos corridos?
De 2003 a 2024, apenas cinco jogos, sendo três deles fora da Globo. Um São Caetano x Ponte Preta, com Globo, em outubro de 2003, quando o time do ABC disputava na parte de cima da tabela e brigava por vaga na Libertadores. Um São Caetano x Flamengo, em agosto de 2004, exclusivo da Record enquanto a TV Globo exibia o último dia de Olimpíada em Atenas. Um Flamengo x Ponte Preta, também exclusivo da Record, em agosto de 2005. Um Criciúma x Flamengo exclusivo da Band em junho de 2013. E um Flamengo x Atlético-MG totalmente acidental na Globo na primeira rodada de 2020, causado pela suspensão em cima da hora do jogo originalmente marcado para transmissão, um Goiás x São Paulo impossibilitado de acontecer quando jogadores do time goiano testaram positivo para a covid-19.
Ou seja, destes cinco jogos em mais de 20 anos, apenas dois foram realmente sem times do estado de São Paulo, e só um exibido por acidente na Globo. Como acostumar o público a isso? Sabe quantos jogos a Record já exibiu em 2025 para os paulistas tendo apenas times de outros estados em campo? Sete. Até a 14ª rodada. Metade das transmissões até aqui. Um passo que só foi possível porque o alcance da competição já estava garantido com a Globo tendo parte dos direitos.
Não se questiona, em nenhuma hipótese, a escolha da Globo nos últimos 22 anos. A audiência deve ser priorizada sempre, e o principal mercado, como querem os donos do dinheiro, é São Paulo. Mas a exclusividade exercida nas últimas duas décadas nos impediu até de saber se esses jogos sem paulistas poderiam funcionar. Já vimos que alguns não funcionam, sofrem no Ibope. Outros, não.
Com Fluminense 0 x 2 Cruzeiro, na noite de 17 de julho, a Record fez média de 7,2 pontos em SP, pico de 9,4, conseguiu 11,6% de participação, e não foi ameaçada pelo SBT na briga pelo segundo lugar, como muita imaginou que seria ao ver na tabela que não haveria um Corinthians, um Palmeiras, um São Paulo ou um Santos em campo. No segundo tempo da partida, na faixa entre 20h29 e 21h34, a Record chegou a aplicar um 8,1 x 4,5 no SBT.
Se foi por causa do dia diferente na semana, sendo a única opção de Série A na TV aberta em um horário mais acessível (19h30), se foi porque o Cruzeiro disputa liderança do Brasileirão e o jogo interessava aos torcedores do Palmeiras (e do Flamengo, que tem boa presença de torcida em SP também), se foi o interesse despertado pelo Fluminense após a ótima campanha no Mundial de Clubes, não é possível afirmar ainda uma causa isolada. Cabe à Record pegar sempre o jogo mais legal possível (o que nem sempre vai dar para fazer) na ausência de paulistas.
Mas o fato que engloba todos esses três casos citados aqui é: tudo muda o tempo todo. O mercado (“a Globo não quer saber mais da F1”), o comportamento do público que surpreende (“não vê jogo na internet se estiver na TV Globo também”, “não vê jogo sem paulistas”), e as nossas próprias “certezas”. O futuro da mídia? É constante mudança com velocidade digna de um carro de Fórmula 1.