O Palmeiras é o grande protagonista de uma negociação histórica com o Grupo Globo. Histórica, porque pela primeira vez na era dos pontos corridos se iniciou um Brasileirão sem que todos os participantes estivessem com contratos fechados nas três principais mídias de transmissão: TV aberta, TV paga e PPV (pay-per-view). O time alviverde assinou com a Turner pelos direitos de TV por assinatura no fim de 2016, na reta final do segundo mandato do presidente Paulo Nobre, mas arrastou desde então as negociações de TV aberta e PPV.
Com isso, dois jogos do clube já ficaram sem aparecer na televisão. O empate diante do CSA, na segunda rodada, por 1 a 1, e a vitória diante do Atlético Mineiro, no último domingo (12), por 2 a 0, ambos fora de casa. Houve ainda o duelo entre Chapecoense e Athletico Paranaense, na terceira rodada, que ficou no “escuro” porque o Furacão não assinou o contrato de PPV com a Globo. Nas redes sociais, o Palmeiras tem sido alvo da ira de torcedores dos times que acabam sendo afetados pela falta de transmissão dos seus jogos contra o Verdão. Da mesma maneira, palmeirenses atacam a emissora carioca por não ceder nos pontos pedidos pelo clube paulista nas negociações.
O que este texto pretende é expandir bastante essa discussão “8 x 80” das redes sociais. O Palmeiras não está errado ao pedir que sejam revistas as formas de distribuição do dinheiro do PPV, hoje baseadas em pesquisas do Ibope com torcedores do Brasil inteiro. O clube pede um percentual mínimo no bolo total que se aproxime do quanto Flamengo e Corinthians vão ganhar. Enquanto cada um deles terá pelo menos 18,5% da grana, o Verdão quer garantir algo entre 15% e 16%. É um direito da gestão de Maurício Galiotte pedir o que acha que seu time vale.
Da mesma forma, o Grupo Globo sabe que ceder a esse pedido do Palmeiras seria como causar uma avalanche de insatisfação em outros times. Basta ver como a história das “luvas” pagas ao Verdão pela Turner, em valores bem maiores do que os depositados aos demais times, pegou mal com as outras equipes que formam o bolo do Esporte Interativo.
A revolta chegou a gerar ameaças nos bastidores e até públicas de rescisão do contrato, especialmente quando a empresa norte-americana decidiu encerrar os canais esportivos no Brasil e migrar o conteúdo principal para a TNT e o Space, dois conhecidos canais de filmes. A Turner teve que abrir o bolso e dar mais dinheiro aos outros times para aliviar a situação. A Globo sabe que pagar mais do que ela deseja ao Palmeiras pode significar o mesmo caminho em relação aos outros times.
Se você não pode assistir ao jogo do seu time, pense duas vezes antes de atacar apenas Globo e Palmeiras. A culpa é principalmente da lei brasileira. É ela que decide que os direitos de transmissão de uma partida de futebol são dos dois times em campo. Quem viveu os anos 1990 e tinha acesso à TV paga sabe que essa situação nem é inédita no futebol brasileiro (leia mais abaixo sobre como já vivemos essa história e chegamos de novo a esse ponto).
Modelos a serem “copiados” não faltam. Em alguns países, o dono da casa é o dono dos direitos de transmissão. Em uma visita a Portugal, há dois anos, tive o interesse de buscar informações sobre como os portugueses assistem aos jogos da Primeira Liga, o campeonato nacional de lá. Descobri que o Sport-TV, principal canal esportivo daquele país, tinha os direitos de transmissão da maioria dos jogos, mas não passava as partidas do Benfica no Estádio da Luz. Pesquisando mais, vi que o clube tem um canal esportivo na TV paga, a Benfica TV, que transmite partidas de diversas categorias, e tem como “prato principal” os jogos da equipe como mandante no Campeonato Português.
Ou seja, se a lei brasileira desse ao mandante os direitos absolutos de transmissão sobre seus jogos, o Palmeiras poderia ter negociado os 19 duelos em casa do Brasileirão com a Turner. A Globo poderia ter comprado os outros 19 clubes, que trariam no pacote os outros 19 jogos do Verdão como visitante. Ou, mais ainda, o clube poderia pensar em transformar a TV Palmeiras em uma versão brasileira da Benfica TV, com transmissões próprias desses jogos. Ao palmeirense, caberia assinar o pacote da TV de seu clube para ver os 19 jogos em casa, e ter ainda a opção de assinar o Premiere, o EI Plus, ou quem quer que tivesse os direitos do clube como visitante.
Nenhum jogo ficaria no escuro. Todos os clubes passariam a ter o mesmo poder nas negociações: seriam donos de 19 partidas cada um. A Globo perderia força com isso? Talvez, mas ela ainda representa o maior grupo de comunicação do país, e seria a única opção viável para diversos times que não teriam a mesma condição financeira e estrutura do Palmeiras para viabilizar transmissões próprias de seus jogos. O próprio Verdão teria que refletir: seria possível faturar mais de R$ 100 milhões por ano sendo dono de 19 partidas do Brasileirão e fazendo transmissões próprias, algo que custa dinheiro? Se parecesse possível, o clube teria o direito de tentar. Se não fosse, poderia ter a opção de negociar com Globo, Turner, Disney ou quem mais viesse. Isso sim seria estimular a livre concorrência.
É verdade que muitos podem dizer algo como “a culpa é da Globo, sim, que não tem interesse em mudar a lei”. Bem, qual foi o movimento que os clubes fizeram até hoje para fazer essa mudança? Mesmo tendo “bancada da bola” no Congresso, dirigentes sendo eleitos como deputados e senadores, políticos levantando troféus e recebendo camisas, etc, qual foi o empenho deles para alterar a lei? Pois é. Culpados não faltam, mas o problema ainda é a lei.
Não é inédito
Na segunda metade dos anos 1990, ESPN Brasil e SporTV se viram em uma disputa que chegou aos tribunais. Isso porque a CBF havia negociado os direitos do Brasileirão com a então TVA, do Grupo Abril, dona na época da ESPN Brasil. E o Clube dos 13, órgão que representava os maiores clubes do país na época, resolveu fazer outra negociação para vender por muito mais dinheiro esses direitos para o SporTV, da Globosat. Resultado: a ESPN ficou com os direitos de transmissão dos times que não faziam parte do pacote do Clube dos 13. E o SporTV ficou com apenas aqueles clubes. Nenhum jogo que colocasse em campo de um lado um time da ESPN e do outro um time do SporTV poderia ser exibido na TV por assinatura.
Já se passaram 20 anos, não aprendemos nada, e deixamos que aquela situação se repetisse. O Brasil não atualizou suas leis e manteve o padrão “ou você tem os dois clubes em campo, ou não transmite”. Entre 2000 e 2011, ninguém lembrou mais da existência dessa lei. Afinal, o Clube dos 13 foi soberano na venda dos direitos de transmissão da maior competição do país. Mas, há oito anos, tudo isso voltou à tona quando a RecordTV entrou na briga contra a Globo para transmitir o Brasileirão na TV aberta.
O Clube dos 13, buscando se adequar a uma resolução do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), lançou um processo de licitação com envelopes fechados para a concorrência dos direitos do Brasileirão entre 2012 e 2015. Seria “a briga do século”, uma vez que a RecordTV vivia uma fase de altos investimentos no esporte, tirando da Globo a transmissão das Olimpíadas de Londres-2012, dos Jogos Pan-Americanos de Guadalajara-2011, e mirava no futebol brasileiro para entrar de vez na disputa de audiência.
Mas a Globo resolveu apostar no formato de negociação individual. Com a ajuda principalmente do Corinthians, comandado por Andrés Sanchez, a emissora praticamente “implodiu” o Clube dos 13 e começou a assinar contratos diretamente com os clubes. Revoltada, a RecordTV também se retirou da concorrência da antiga entidade. Sobrou um leilão simbólico, “vencido” pela RedeTV! em um contrato jamais validado. Todos os clubes acabaram fechando individualmente em todas as mídias com o Grupo Globo.
A vitória naquele caso acabou gerando os problemas atuais. Com a mesma arma usada pela Globo, a Turner entrou no Brasil de vez em 2014 com a compra definitiva do Esporte Interativo. Provocou o primeiro baque ao tirar da ESPN os direitos de transmissão da UEFA Champions League, que estavam há duas décadas na emissora. E começou em 2016 a apostar nas negociações individuais pelo Brasileirão. Fechou com Santos, Internacional, Athletico Paranaense, Coritiba, Fortaleza, Bahia, Ceará, Santa Cruz, Criciúma, entre outros, mas perseguiu mesmo um acordo com o Palmeiras.
O clube alviverde vivia em 2016 uma fase de renascimento. Depois de quase ser rebaixado pela terceira vez em 2014, no ano de seu centenário, o Palmeiras se reestruturou no futebol a partir do ano seguinte. Graças ao trabalho de recuperação das finanças entre 2013 e 2014, o clube passou a investir, muito ajudado pela inauguração do Allianz Parque, que gerou um “boom” no programa de sócio-torcedor Avanti, passou a atrair mais público para os jogos do do time, e puxou o interesse da Crefisa como patrocinadora master. Logo no primeiro ano, o Verdão foi campeão da Copa do Brasil. Virou favorito a todos os títulos que disputou desde então.
Em 2016, o time do Palmeiras dominava em campo o Brasileirão, enquanto nos bastidores a Turner tentava convencer com uma nova maneira de divisão financeira e valores altos em “luvas” o clube a apostar no Esporte Interativo. Foi importante nesse processo a presença do Santos e do Internacional no meio dos times já fechados com a empresa. Isso deu segurança ao Verdão de que as transmissões do EI poderiam funcionar bem, tendo times grandes no pacote. Logo após ser campeão brasileiro, o clube alviverde anunciou o acerto com a empresa norte-americana.
Perceba que houve um período de dois anos e meio entre o acordo Turner-Palmeiras e o que estamos vivendo hoje no Brasileirão. Esse tempo acabou não sendo suficiente para Verdão e Globo chegarem a um acordo, já que a emissora também exigiu bloqueio de praça nos jogos transmitidos pela TNT/Esporte Interativo, quis aplicar um redutor no contrato dos clubes fechados com a concorrente, e não aceitou os pedidos do Palmeiras sobre o bolo de PPV. Só não feche os olhos para o fato de que tampouco o Athletico Paranaense aceitou nessa mídia. O Furacão, quase nos “acréscimos”, assinou um contrato de TV aberta com a emissora carioca. Mas segue fora do PPV. Alguns de seus jogos também estão no “escuro”, como foi o caso da partida diante da Chapecoense.
Enquanto a lei brasileira não se atualizar aos novos tempos, clubes e emissoras não terão o direito de negociar em bases que sejam mais favoráveis a ambos. E ainda sofrerão com a justa pressão que vem do torcedor, a razão de existir do futebol.